Ala penitenciária de Bangu III em dias de pós-rebelião. Clima de medo ronda as cabeças de fora. Vejo sempre enorme Bíblia aberta aberta por sobre a mesa do diretor da cadeia, como uma arma, uma espada, a proteger-lhe. Todo mundo prefere não entrar lá, ao meio das galerias de dentro. O ar das duas alas, principalmente da B, respiram a guerra entre duas tropas inimigas em choque, os soldados de fora e os internos de dentro. Como a deixar o coletivo se refrear e abrandar-se do seu furor de revolta, a guarda prisional mantém-se distante, sempre fora do miolo das grades, na proteção de todos os cadeados batidos, isto é, fechados nas travas das portas. Na ala B tenebrosa e meio escura, nem mosquito parece querer voar, num espaço de silêncio e de sem vida.

Cautelosos mas firmes, eu e o guarda, dispostos, transpomos a grade rejeitada do mundo. A escola, mesmo que por uns instantes necessita abrir, na insistência diária nossa dela nunca poder morrer. Pois, queriam porque queriam, que os internos da Serrano Neves, Bangu III,  não tivessem mais escola. Toda a cadeia no R.D.D., regime disciplinar diferenciado, que significava sem cantina, sem visita e sem televisão, mais inda então que a escola se fechasse de vez. Mas minh’alma decidida e firme resistia com eles, os encarcerados da revolta. Assim, todos os dias, num ritual religioso de permanência sem falhar, as portas escolares se abriam e se fechavam, mesmo sem alunos, como a dizer, estamos aqui e não iremos parar.

Numa das manhãs mais pesadas e escuras da cadeia, eu e o único guarda acompanhante já estávamos à porta da escola, no seu acesso de escadas. Nenhuma alma vivente corria, além de nós, num clima de aterradora solidão, a do inseguro  pavor. Nisto, um único preso amigo, à distância postou-se a sair da grade, pois trabalhava no consultório, em auxílio aos médicos. Sem que ainda o soubéssemos, um forte e robusto interno nos olhava da galeria B3. Assim, de costas e num estampido de voz, eu e o guarda ouvimos o grito de ordem ensurdecedor: “ninguém hoje sai das galerias pra nada!” A seguir se completou em tom mais baixo de revolta e de respeito: “nossos familiares em visita estão sendo maltratados lá fora!” Feito isto, a voz do grito solicitou-nos que naquele dia não abríssemos a escola. Solicitado e posto. E o interno que já saíra, retornou para as grades num pulo só. Em revolta humana, a cadeia se fechou para o mundo, naquele dia o negava.

Um pulo agora em mim mesmo. Anos depois, já lecionando na escola do V, a penitenciária Elizabeth Sá Rego, deu-se o adiante. Saímos eu e a diretora da escola a buscar umas merendas. No retorno, já à porta da nossa cadeia de trabalho, meus olhares perscrutadores vislumbraram em repente um idoso corpo em sofrimento sentado no chão. Era de uma velhinha que, impedida de visitar em perda de horário, e viera de longe, se lamentava choramingando e só. Em risco de tiro, aquilo me cravou no corpo e eu não percebi. A seguir, na revista em que entrávamos, as piadas maldosas do guarda de que preso não merecia aquilo de merenda, encheram-me um pouco mais. Já dentro das grades, na ala, súbito mal-estar incontrolável começou a afogar-me por dentro, talvez que eu fosse cair. Segurei-me nervoso a uma das grades próxima. E o caroço por dentro aumentava. Num quase surto de descontrole, deu ânsias de agarrar-me ao presidente do coletivo que me olhava meio desconfiado, sacudi-lo, gritando-lhe que tudo aquilo com as visitas não podia acontecer. Tinha ganas de chutar as grades ou qualquer coisa por perto, e de chorar. Juntei forças de me controlar e consegui. Mas pareceu-me que o amigo presidente notou meu mal estado. Depois, vaguei dias com espírito de insegurança e busca de apoio que não encontrei. Porém, o pique de revolta e de ódio, trabalhado fortemente, se aquietara no íntimo.

As idas e vindas, durante dez anos pela estrada interna do Complexo de Gericinó, conviveram com o sofrimento, o trabalho e o amor, nas rotinas das multidões em visita. Em cada corpo que via, eu procurava ler e aprendia traços de humanidades. As visitas, visitando, me ensinavam a viver. Humanos vêm para ver o separado, o querido, no distante. Pés andavam pela estrada dos sentimentos.

Num único dia, boca inteligente de interno clamou-me que lutasse por um espaço de apoio às visitas lá fora. Algo que as auxiliasse e orientasse em tantos casos de confusão e incompreensão. Um ponto de parada e relaxamento, com banheiros e água para se beber, pois só humanos visitam. Simples e cômodos dormitórios para quem viesse de longe, dos municípios distantes. Dado também a desorientação do nosso povo ser grande, pessoas até que lessem o escrito e o explicassem. Havendo armários em que se guardasse o impedido ou proibido de entrar, a modos de se evitar os roubos e perdas que foram e que são muitos. A casa da família, assim haveria de ser, e que talvez até assim se chamasse. Que no respeito de ser, todos daqui somos pessoas.

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